Subterfúgio de Palavras

Leonor, Portugal. – "Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo." Fernando Pessoa

Month: Outubro, 2015

Hedionda Realidade De Ser

Era difícil parar para pensar sobre o que ele estava a pensar. O desejo de descobrir era tanto que acabei por me perder a mim mesma. Andei por aí a perguntar quem eu era por me ter confundido com algum ser para além dos muitos que há em mim. Corri pelos campos de trigo que sempre gosto de inventar e cheirei os lençóis brancos e perfumados que estavam estendidos no topo do meu corpo. Como nada disso funcionou comecei a falar para ele.

Ele és tu. Não há necessidade alguma de eu me desviar de ti tratando-te como alguém que aqui não está. Afinal é para ti que falo. Todos os que se juntam à leitura não são mais que meros interessados na vida alheia.

Passei a tarde a tentar escrever o que me ocorre, mas apago mais do que alguma vez escrevo. O mundo real é demasiado sentido, é escrito de um modo num dia e descrito ao avesso no outro. A instabilidade é minha e portanto só comecei a escrever para barafustar. Podia simplesmente falar: falar alto, falar baixo, sussurrar, gritar, cantar, dançar e cantar! Ou podia simplesmente escrever o que me apetecesse sem pensar nas palavras e na beleza das mesmas quando são passadas para o papel. Porque ser poeta é fácil! Qualquer um é poeta quando grita a alma para fora de si e ninguém lhe sabe responder. Eu não me contento a falar, e não me contento a escrever. Por isso é que escrevo e falo e falo e escrevo com e sem vírgulas para nunca parar. Faço-o para chegar à exaustão e parar e ter dito e escrito os maiores contra-sensos que me passam pelo pensamento.

Na semana passada estava com uns amigos numa mesa e surgiu-me uma ideia. Pedi uma folha velha mas deram-me uma nova. Pouca diferença me fez. Depois pedi uma caneta preta mas deram-me uma azul. Pouca diferença me fez. Escrevi o que tinha a escrever. Esperneei com as mãos o que tinha a espernear e no fim escrevi “Merda” no topo. Pedi a fulano para ler o que eu tinha escrito em voz alta mas sicrano é que leu. Pouca diferença me fez. Depois de lido o pequeno texto que só não era poema por não ter versos disse-lhes, a pensar em alguém dentro de mim mas para além de mim, que não tinha sido eu a escrever. Porém, eles aplaudiram na mesma porque maior barbaridade que o meu poema sem versos era eu desmentir uma ação diante dos olhos de quem realmente me vê. Só vou transcrever o poema para perceberes porque todo o mundo é poeta quando grita a alma para fora de si.

Merda

A semana foi uma merda que cheira ao aroma que o vento traz quando eu vou à aldeia. Uma aldeia de casais velhos e sábios mas chatos ceifeiros. Velhos e velhas cuja frequência das coisas diminui à medida que a morte vem. E vem e vem e vem mas não chega. Merda que a morte não chega! Merda que os velhos não morrem! Vão-se as vacas, vão-se os bois. E a merda fica. Fica como o estrume. Fica como os velhos. 

Se eu fosse poeta e se estudassem os meus livros nas escolas, estariam por esta altura a tentar perceber o que quis eu dizer com “ceifeiros”. Não seriam os velhos apenas simples ceifeiros? É este o prazer de escrever! É escrever e parar e mudar o que eu estou a escrever quando bem eu entender. É rimar nas entrelinhas e fugir ao que não se quer dizer. Ou então é arranjar uma forma de dizer para ninguém entender. Quando entendem, não entendem realmente porque a dor já não é do escritor nem do leitor mas isto já la vai em Pessoa, ou Fernas como lhe gosto de chamar. Cá para mim, livro é livro e somente livro com leitor e escritor portanto livro é sentimento partilhado de ambas as partes.

Sabes porque escrevo para além do prazer? Para ver a discrepância do meu próprio ser. Para gravar as palavras em algum lugar, um pouco mais ou menos como um epitáfio num túmulo qualquer em honra de uma alma qualquer de partida para um mundo qualquer que não este. É de uma brutalidade enorme escrever por escrever sem ter ninguém pra nos ler, mas eu escrevo à mesma, tal como falo alto para ninguém me ouvir como um tolo num hospício. Conheço poucos, mas a maior parte deles anda cá fora.

No inicio da tarde falava eu da roupa estendida que é balançada pelo vento que ronda o estendal. Pensava até onde o vento, do qual eu estava abrigada, me podia levar e em que medida a roupa me fazia cogitar. (Cogitar! E seja o esforço transcrito para todas as palavras no mundo!). Leva-me horas a escrever ninharias porque tanto temo a carência do belo como de seguida desejo a descrição da hedionda realidade da mente. É difícil dar-mos o máximo de nós, damos tudo, mas achamos sempre que ainda temos mais para dar. Parcamente falei do estendal e nem sequer me expliquei quanto ao transtorno de não te entender. Mas tal como o azul da caneta ou o novo do papel ou ainda o clamar de um poema sem versos escrito por uma pessoa qualquer, pouca diferença me fez.

Tempo

Não há-de o tempo passar mais depressa por eu ver os ponteiros lenta e desesperadamente mover de um modo meio que com pânico quando a roda mecânica os faz avançar. Não hei-de sair daqui por escrever os minutos a lápis na mesa que borro quando lhes passo a borracha e os apago como o tempo no próprio tempo. E se eu quiser parar, não hei-de prende-lo, não por não querer mas por não poder. Tem mais ele sobre mim que eu sobre ele. Aliás, tem mais ele sobre o mundo, que o mundo sobre ele! Ditamo-lo como algo que existe mas que não está em lado nenhum, desgastamo-lo aos poucos e ele desgasta-se para nós, nós que o desprezamos por nunca estarmos saciados. É irónico, porque o tempo morre para mundo e é imortal, tem tempo para tudo e para todos, mas fica sempre a dever. A nós. Nós que somos eternos insatisfeitos. Nós que somos eternos inconformados.